Sob o enredo da liberdade, a premiação do Oscar ao filme brasileiro é uma resposta política enfática diante de uma ameaça real do desmonte da democracia na maior potência mundial, os EUA, assim como em tantos outros países.
Hollywood sabe de seu poder. Ao longo da história, sua produção tem tido um papel decisivo na transformação de sociedades. Sem qualquer segredo ou constrangimento, a indústria do cinema nos EUA foi uma arma da construção da ideia da “excepcionalidade” americana, com um profundo impacto numa nação que foi orientada a acreditar que tem uma suposta missão no planeta.
Também foi, com produções extraordinárias, uma plataforma para denunciar o nazismo e outros crimes.
Desta vez, o Oscar foi para a democracia, justamente quando americanos, mas também europeus, brasileiros e tantos outros descobrem que ela está sob seu maior ataque em quase cem anos.
Nos EUA, a premiação ocorre num momento de choque por parte da sociedade ao descobrir como o impensável está sendo implementado: o colapso das instituições e dos direitos fundamentais.
A mensagem do filme, portanto, ecoa. É universal e colocou no centro da sala o debate sobre o que ocorre com uma família quando a arbitrariedade do autoritarismo vinga.
E, hoje, isso dispensa tradução em línguas estrangeiras. Aquelas cenas de uma família atravessada pela suspensão das garantias mais fundamentais e do direito à vida poderiam ocorrer em qualquer lugar. Inclusive nos EUA.
Num mundo onde a extrema direita avança, onde a desinformação passou a ser um instrumento legítimo de poder e o espaço cívico encolhe, “Ainda estou aqui” é uma declaração de amor à resistência e à construção da democracia por cada um de nós.
A resistência é a insistência de Eunice Paiva em fazer com que, diante do fotógrafo, todos estejam sorrindo. Algo insuportável aos movimentos autoritários.
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A resistência é o intransigente dever de memória, inclusive como homenagem a quem a perdeu.
A premiação também é um recado poderoso de que, numa democracia, a anistia não é o caminho para a paz social. No Brasil, os criminosos estão vivos, assim como a impunidade. Um dos torturadores chegou a receber 26 medalhas ao longo de sua carreira militar. O outro foi condecorado com a Medalha do Pacificador. Juntos, os responsáveis por aqueles atos custam aos cofres públicos mais de R$ 1 milhão por ano em pensões.
Nos EUA, foi Donald Trump quem anistiou mais de mil pessoas, responsáveis pelos ataques ao Capitólio e tenta apagar a data da conspiração contra a democracia americana.
Por todos esses motivos, premiar o filme brasileiro vai além da constatação de sua qualidade como arte. Antídoto à onda autoritária, ele confronta populistas, charlatães e vendedores de ilusão do século 21 ao afirmar que a democracia ainda está aqui. E que a sociedade não abrirá mão dela.
Walter Salles, ao aceitar a estatueta, resumiu ao citar a atitude de Eunice Paiva diante da ditadura: “não se dobrou”.
Fonte:Uol