Minha identidade é negra
Mantenha seu preconceito longe do meu cabelo, porque ele é lindo!
Certo dia acordei, me olhei e não me reconheci. Demorei um pouco a entender profundamente o que minha mãe tentava me ensinar quando dizia “sou negra” filha, tenho orgulho da minha cor. Eu não sabia direito o que isso significava, porque eu não me aceitava, como todas as mulheres que não tinham uma “identidade”, eu cresci querendo apagar meus traços das minhas heranças ancestrais. Minha mãe, com sabedoria e sem sequer sonhar com o que ia significar o colorismo anos depois, tentou me ensinar sobre ele na prática, sobre os tons da pele do meu pai, sobre a mistura das cores branca, parda e negra. E culturas e toda a consciência que me fez odiar a colonização, escravidão e carregar sempre esse orgulho seja dos descendentes indígenas e negros que tive contato tão cedo, afinal os quilombos estavam aí para nos mostrar que tudo se misturou e nessa mistura de cor e sangue, jamais podemos esquecer e nos envergonhar.
Foram mais de 10 anos tendo vergonha do meus traços negros e querendo ser igual às meninas brancas, magras e de cabelo liso. Aos 23 anos, em Recife e na construção da minha identidade, eu entendi o que Mainha e minha bisavó (que era indígena) me ensinavam quando não tinha sido cunhado esses termos de colorismo, consciência e tantos outros. De forma simples, eu amava ouvir as histórias que elas me contavam e com muita atenção, criando aquilo que os livros que escreviam com indiferença, elas sempre diziam: o colonizador é vilão. Depois de entender isso, foi só em Recife que eu consegui aceitar minha identidade, meus traços exatamente como são e com eles que eu jamais seria branca. Mulher, negra e da pele clara ou parda ou como diria mainha “desbotada” por causa do ar-condicionado e pouca exposição ao sol. Consciente que não sofre preconceitos como as negras retintas e de pele mais escura. Mas que também já sofreu preconceito e as microviolências diárias, quando é confundida inúmeras vezes como atendente de loja ou a faxineira do prédio chique que eu já circulei nos condomínios de praia. Ou quando lojas não querem me atender porque acham que eu não tenho dinheiro, ou quando me acusam de ter roubado um celular, ou quando as atendentes da loja e algumas pessoas tentam fazer eu me sentir feia por causa do meu cabelo, que eu deveria mudar, comprar xyz, hidratar mais ou fazer xyz procedimentos estéticos pra tirar as curvas do meu corpo e do meu cabelo.
Quando eu comecei a observar os lugares “ricos” e privilegiados que eu frequento, que eu andava e passava o olho, buscando pessoas negras da periferia igual eu e não encontrava nos lugares mais privilegiados seja no trabalho, nos hotéis ou nas viagens, era sempre raro encontrar. Eu passei a entender profundamente o que minha mãe me ensinava quando dizia: tenha orgulho da sua cor (história), não somos melhores que ninguém, mas também não devemos baixar a cabeça. E assim, eu percebi que uma pessoa negra em posições “raras” e “privilegiadas” são comumente vistas como arrogantes porque é meio que esperado que a gente se diminua. E é assim que eu aprendi a responder ironicamente: -só faço faxina na minha casa.
-moro aqui, vou querer sim o serviço mais caro porque posso pagar;
- deixe meu cabelo em paz, porque ele não é feio, não precisa de hidratação e não pedi sua opinião.
E hoje, de forma simples, eu me orgulho de toda nossa história de luta, dos tons diversos da nossa pele, da diversidade, de ser uma mulher periférica que abraçou cada oportunidade que teve como a “última”, a qual sabe que se não fosse o racismo estrutural, as oportunidades teriam sido inúmeras mais. E que eu desejo cada oportunidade maior pro “meu povo” pra gente que veio desses lugares, porque lugar de preto é no topo e sendo feliz, ainda que incomode muito aonde vá.
Hoje, meu desejo vai para todas, todes e todos que não têm esse reconhecimento, ter. Que as mulheres negras amem, cada traço, cacho, crespo, cabelo, curva, cor e ainda mais valorização dessa beleza, conquista de espaço, quebras de paradigmas e que isso não seja preocupação delas, mas sim, de quem criou “o preconceito” e o conceito de “beleza branca”, pureza e tudo mais que precisa ser desconstruído para que possamos de fato vivermos “em paz” com nosso cabelo, nossa cor, nossos corpos, nossa cultura e existência inteira. Inteira de oportunidades e livre dessa negatividade que nos diminui, limita e mata a negritude periférica todo dia.
Autora: Bárbara Alcântara