Por dentro da extrema direita chinesa nos EUA
Uma pesquisadora australiana tenta entender como a desinformação flui pela diáspora chinesa na América do Norte.
Wu Qian não consegue tirar os olhos do telefone. Ela verifica incansavelmente uma dúzia de salas de bate-papo em chinês do Telegram, onde milhares de sino-americanos conservadores discutem notícias, política — e, às vezes, até conspirações do grupo QAnon.
A pesquisadora australiana de 33 anos, que pediu para seu nome verdadeiro não ser usado nesta reportagem, caminha na ponta dos pés, como infiltrada, por essas redes de extrema direita chinesa. Seu objetivo é entender como a desinformação flui entre esses grupos.
“Eu vejo muita desinformação todos os dias”, diz Qian. “E estou curiosa para verificar as suas origens.”
Ela começou a notar uma onda maior de notícias falsas relacionadas à pandemia na diáspora chinesa na metade de 2020, quando o coronavírus varreu o globo.
Para combater a disseminação de tanta notícia falsa, ela organizou um grupo de centenas de verificadores de notícias voluntários. Seu objetivo era desmascarar essas histórias mentirosas, mas não demorou muito para que esses ambientes digitais fossem dominados por uma forte corrente de boatos e teorias da conspiração envolvendo a eleição presidencial dos Estados Unidos, que ocorreu no ano passado.
Falsas alegações de fraude, em particular, se espalharam como fogo no palheiro entre os imigrantes chineses extremamente conservadores na América do Norte — um grupo pequeno, mas expressivo, entre as comunidades da diáspora.
“Eles são politicamente ativos e agem coletivamente com frequência”, diz Qian.
A maioria dos membros dessas salas de bate-papo são fervorosos apoiadores de Donald Trump, ex-presidente dos Estados Unidos, se identificam como cristãos e nutrem opiniões bastante críticas sobre o Partido Comunista Chinês.
A pesquisadora diz que não posta nada nos grupos do Telegram. Ela apenas observa as conversas. Enquanto isso, os outros participantes do bate-papo trocam dezenas de milhares de mensagens todos os dias.
Doações para os Proud Boys
Em dezembro de 2020, Qian identificou um movimento que pedia a arrecadação de fundos para beneficiar os Proud Boys (Meninos Orgulhosos, em tradução literal).
Trata-se de um grupo de extrema direita que é classificado pelo governo do Canadá como uma “organização neofascista” terrorista.
A “vaquinha” serviria para cobrir as despesas médicas de membros feridos durante um comício pró-Trump em Washington, capital dos EUA, que ocorrera alguns dias antes.
A mensagem começava com uma frase comovente em chinês: “Não deixe lutando com cardos e espinhos aqueles que pavimentam o caminho em direção à liberdade”, seguida por emojis de rosas e corações, além de, claro, links para um site de crowdfunding (financiamento coletivo, em português).
Vale destacar que os Proud Boys são um grupo contrário à imigração. Mas, aos olhos da extrema direita sino-americana, eles estão lutando contra as forças comunistas pela liberdade.
A mensagem de arrecadação de fundos foi compartilhada em vários grupos do Telegram e atingiu dezenas de milhares de conservadores em poucas horas.
“Quanto mais [doações], melhor”, escreveram os organizadores da arrecadação.
Uma dúzia de doadores declararam no site de financiamento coletivo que são americanos ou canadenses cujos familiares vieram de China, Hong Kong ou Taiwan. Alguns deles deixaram mensagens, desejando aos membros feridos do Proud Boys “uma recuperação rápida”.
Em menos de um mês, a vaquinha virtual arrecadou mais de 100 mil dólares (R$ 525 mil), de acordo com dados contabilizados pelo Distributed Denial of Secrets, um site de denúncias. Esse número também foi checado pela BBC News.
Das quase mil contribuições individuais, mais de 80% vieram de doadores com sobrenomes de origem chinesa.
Uma mulher sino-americana que doou 500 dólares (R$ 2,6 mil) disse ao jornal USA Today: “Você tem que entender como nos sentimos. Conseguimos sair da China comunista e apreciamos muito o que vivemos aqui.”
Ascensão da direita sino-americana
Nos Estados Unidos, imigrantes chineses se tornaram uma força crescente na política conservadora.
Muitos são impelidos para a direita por sua oposição às políticas afirmativas, que visam reduzir a desigualdade em áreas como educação e trabalho, mas são vistas por alguns sino-americanos como prejudiciais às oportunidades para seus filhos e netos.
As crenças anticomunistas também desempenham um papel importante na mobilização desse grupo, já que alguns acreditavam que a política linha-dura do governo Trump pressionaria Pequim e acabaria levando à queda do regime comunista.
“Na história dos Estados Unidos, Trump é o presidente que mais apoiou os direitos humanos na China”, afirmou um imigrante chinês que reside na cidade de Los Angeles.
Enquanto Pequim apertava seu controle e aumentava a pressão militar nos últimos meses, um número crescente de cidadãos de Hong Kong e Taiwan depositavam as esperanças na posição “dura com a China”, que era uma das bandeiras de Trump.
E, para completar, a pandemia trouxe a possibilidade de uma aliança improvável entre a diáspora chinesa e os conservadores americanos, enquanto os governos em Washington e Pequim entraram em confronto sobre as origens da covid-19.
Para os oponentes, culpar a China por não conter o vírus dentro de suas fronteiras é uma oportunidade de condenar o governo comunista.
Enquanto isso, a direita americana entende que as críticas sobre a China por causa da pandemia tiram o foco sobre as políticas internas de Trump, que levaram o país a ter o mais alto número de casos e mortes pelo coronavírus até o momento.
A aliança entre Steve Bannon, ex-conselheiro de Trump, e Guo Wengui, empresário chinês exilado, é um exemplo disso. A dupla está envolvida em uma ampla rede que dissemina desinformação sobre supostas fraudes eleitorais, as vacinas contra a covid-19 e as narrativas do QAnon em várias mídias sociais.
Para completar, os imigrantes chineses costumam ignorar os sites jornalísticos tradicionais na hora de consumir as notícias, de acordo com o First Draft, uma organização sem fins lucrativos que luta contra a desinformação.
Isso acontece em razão das barreiras de idioma e os costumes em lidar com as notícias entre esse grupo.
Na diáspora chinesa, muitos tendem a ler as reportagens que circulam por espaços mais fechados e particulares, como os grupos de mensagens do Telegram — afinal, já existe ali uma relação de confiança entre os participantes, e todas as informações compartilhadas são aceitas como verdades, o que cria enormes “câmaras de ressonância da desinformação”.
“Depois que você é exposto às redes de informações falsas, é difícil sair desse universo”, analisa Qian.
‘Reviravolta’ nas eleições?
Quando manifestantes pró-Trump invadiram o Capitólio em janeiro de 2021, houve um verdadeiro frenesi entre os membros de extrema direita sino-americana.
Nas salas de bate-papo do Telegram, as pessoas iam “além do entusiasmo”, lembra Qian. Elas estavam torcendo pelos desordeiros e celebrando a “reviravolta” nos resultados das eleições presidenciais.
Nesse mesmo dia, a arrecadação de fundos para os Proud Boys foi marcada por um novo aumento nas doações. Um benfeitor anônimo escreveu em chinês que eles deveriam “impedir que Satanás roube a eleição”.
Nos grupos privados, muitos dos membros haviam inclusive planejado a logística do comício pró-Trump em Washington: eles encomendaram camisetas com os dizeres “Sino-americanos a favor de Trump” e reservaram ônibus que sairiam de várias cidades para inundar a capital dos EUA.
No dia 6 de janeiro, mais de uma centena de sino-americanos esteve em Washington e se juntou aos demais manifestantes na marcha contra o resultado da eleição. Na multidão, dezenas agitavam bandeiras americanas, gritavam slogans pró-Trump e seguravam cartazes com os dizeres “Fim da tirania. Fim do PCC [Partido Comunista Chinês]”.
Um manifestante disse a um canal conservador no YouTube que o dia marcaria uma nova era para os sino-americanos.
“Nós realmente nos tornamos americanos. Finalmente entramos na esfera política do país”, afirmou, em mandarim.
Não está claro quantos desses indivíduos chegaram a invadir o Capitólio, mas vídeos sobre o ataque ao Congresso e toda a desordem se tornaram virais nos grupos de mensagens com integrantes da diáspora chinesa.
Em um desses materiais, um homem grita em mandarim o preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos.
Qian acredita que, embora esses manifestantes sino-americanos se sintam fortalecidos pela liberdade e pela democracia nos EUA, eles estão cercados pela desinformação política, o que atrapalha a interpretação que eles têm dos fatos.
Nos fatídicos protestos de janeiro, Qian entende que os manifestantes “queriam mostrar o poder do povo aos legisladores, mas não tinham ideia de quais seriam as consequências de seus atos”.
Quando uma grande maioria de americanos começou a condenar o ataque ao Capitólio, muitos grupos do Telegram rapidamente removeram o histórico de mensagens relacionadas aos tumultos, observou a pesquisadora.
Nos últimos meses, a discussão sobre as alegações de fraude defendidas por Trump já diminuiu, mas as salas de bate-papo permanecem ativas: os membros agora focam a sua atenção em teorias de conspiração sobre as vacinas contra a covid-19 e os supostos vínculos do atual presidente Joe Biden com a China.
Muitos creem nos boatos de que Biden tem laços estreitos com Pequim. Para isso, citam os contatos comerciais mantidos por seu filho, Hunter Biden, com empresas do país localizado na Ásia.
Recentemente, quando o presidente americano fez um discurso que tratava da China e omitiu algumas palavras, participantes dessas salas de bate-papo concluíram que o líder dos EUA estava “enviando um sinal”, lembra Qian.
A situação no momento pode até estar mais calma. Mas, nos cantos secretos da Internet, a extrema direita sino-americana está atenta à próxima tempestade política.
Fonte: G1